Previsão do tempo:
Vai passando…
Aproveite!
Lia-se, assim escrito, na tabuleta afixada por cima do bar de praia. A Praia dos Surfistas, como é conhecida por quem sabe da existência desse paraíso na terra. O mais perto que estive do fim do mundo, eu mais sete amigos, esquecidos nos confins da costa angolana por um dia. Uma aventura digna de grandes repórteres, daqueles em extinção, e daquelas que a vida, por muitas voltas que dê, não nos deixará esquecer.
Penso muito nessa viagem. Mas foi precisamente um desses sete amigos quem me lembrou há pouco tempo desse irónico e cruel pormenor que — se não fosse ele, aliás — provavelmente nem teria dado conta na hora. Voltei ao abrasador areal de Cabo Ledo a partir de uma noite gélida no Galeto (outro bastião do Tempo), quando voltei a ver a fotografia dessa mensagem, inscrita ao lado do exótico letreiro Cuca, precisamente tirada por ele. Um autêntico murro do estômago condensado a megapíxeis.
Pois tempo foi coisa que deixou de existir depois das atribuladas horas de viagem desde a Residência Paraíso até à encosta de Cabo Ledo — o verdadeiro paraíso. Deixou-nos o Edgar, com hora de regresso por alto acordada, sem sabermos nós (nem ele, na verdade) se a carrinha de nove lugares aguentaria mais uma ida e vinda de estradas esburacadas até mais não. Fé em quem nesses dias nunca nos havia deixado ficar mal, nem mesmo quando fomos levados para a esquadra sob pena de uma multa em kwanzas avultada, tudo por culpa de uma má indicação de um dos oito (nenhum nome será revelado em defesa do grupo – e do carismático palerma em particular) que nos fez virar em falso à hora errada.
Sem rede nem roaming, éramos nós oito e a praia. Duas pranchas de surf e todas as ondas do mar só para nosso proveito. Água de entrar e mergulhar por mais. Fizemos bem em levar bola, que já nos tinha servido de entretém na arrebatadora baía de Muxima, com a qual disputámos um aguerridíssimo quatro para quatro — com reviravolta dramática para o nosso lado — em preparação da partida que haveríamos de assistir nessa noite em pleno Estádio 11 de Novembro (outra aventura inesquecível…) entre palancas e camaroneses. Com merecida caminhada após o desfecho, para alongar as pernas e o espírito, pegadas a perder de vista numa praia sem fim. Numa tarde sem fim.
Penso muito nessa viagem. Em que, desde o primeiro dia, fui — como é meu apanágio — sofrendo por antecipação do seu final, ainda que o tempo durante esses sete dias se tenha suspendido por forças maiores. Sete dias, sete amigos com os quais fui casar outro. Sete amigos que nesses sete dias foram mais do que a amizade pode querer ou sequer imaginar. Subentendemos tacitamente essa fraternidade enamorada que se foi fortalecendo ao longo desses sete dias, até porque, assim vivida, seria necessariamente sempre passageira. Mas nenhum de nós oito se esquecerá de como, naquela semana em que deixámos para trás família, amigos, namoradas e santos populares, nos sentimos mais próximos uns dos outros que nunca. No nosso último jantar, as duas rondas sucessivas de discursos individualizados, em tom de despedida agradecida, não chegaram para o confessar. Andámos todos lá perto, era realmente isso que todos queríamos dizer quando chegava a vez de cada um tropeçar nas suas próprias palavras. Felizmente, há coisas que não precisam de ser ditas, sobretudo quando se trata de homens a expressar afecto pelos seus amigos a milhares de quilómetros de casa.
Só que, invariavelmente, a vida foi passando. A previsão lá se cumpriu, mesmo que tenhamos aproveitado tanto quanto queríamos. Penso muito nessa viagem porque em nada a mudaria se a pudesse reviver. E revivê-la-ia mil vezes da mesma forma, sem alterar uma única vírgula da história que, nas suas infindáveis peripécias, ficou por contar. Daqui a nada faz um ano que estávamos a partir, porque o tempo, como está previsto, passa. E há quase um ano que venho a pensar nessa viagem com uma saudade inexplicável. De tudo o que vimos e vivemos, claro, mas sobretudo de a vida, nesses sete dias, não ter sido nada mais do que isso. Afinal de contas, pudemos, por sete dias, voltar a ser miúdos incondicionalmente livres: passávamos dias e noites a rir com e uns dos outros, sem quaisquer preocupações de quanto tempo falta para isto?, o que vão pensar daquilo?, ou quanto custa aqueloutro? — nem mesmo perante a possibilidade de pagar uma avultada multa em kwanzas.
Completamente abstraídos de tudo o que em Lisboa havíamos deixado — trabalho, pais, namoradas, outros amigos, compromissos, preocupações, normas sociais, resultados do campeonato português, absolutamente nada —, com a única e exclusiva agenda de nos divertirmos de sol a sol. Foi assim desde a chegada ao húmido e abafado Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, onde conhecemos o nosso mais fiel motorista Edgar, até ao primeiro e último jantares na marginal da cidade, em que nos olhavam — e nos comportávamos — como verdadeiros forasteiros. Desde o casamento, em que oito tugas fecharam a pista de uma festa na banda, à Chicala, onde comi a melhor refeição da minha vida. Do cabrito na luxuosa penthouse do Dr. Venceslau ao chilli do tio Jonas com vista para a fascinante baía de Luanda. Da riqueza desmedida à pobreza implacável. Ingénua, egoística e despropositadamente, tudo nos alimentou o espírito quando tudo o resto nos foi alheio. A vida e o tempo suspenderam-se para que, contra as previsões mais fatídicas, pudéssemos aproveitar essa viagem irrepetível. E aproveitámos. Isso é que custa ao olhar para trás no tempo.
E ainda bem que o tempo passa. Grande texto (vem lá do Sul do coração).